terça-feira, 13 de dezembro de 2011

O MENINO DA CHUVA

Era final de Março, dia de intensa tempestade, os meninos andavam de bicicleta procurando abrigo. Carlos, o menor, se desviou da turma, se perdeu em meio ao turbilhão de chuvas. Não enxergava um palmo à frente de seus olhos e decidiu acelerar a pedalada para alcançar seus amigos. De repente, bruscamente, caiu o menino, se esfolando todo naquela rua enlameada.
Ficou estendido na rua, desmaiado no barro por longo tempo. Perderá a consciência quando bateu, repentinamente, sua cabeça no chão. Não tinha noção de tempo nem de espaço. A chuva já afinara, mas, o menino não sabia nem onde estava. Em momento oportuno surge uma mulher, uma senhora das redondezas e apanha o menino nos braços. Leva-o para sua casa. Lá, grita a seu marido Afonso para ir pegar os medicamentos de ferimento. Após o feito, Afonso parte para a rua do acidente para apanhar a bicicleta do menino.
A mulher, também conhecida por Dona Rosa, trata com esmero os ferimentos do menino, como fosse de seu próprio filho. Seu marido pergunta-lhe o nome e onde ele mora. O menino ainda confuso, atordoado pelo acidente, pela casa onde está, pelas pessoas que vê, responde com dificuldade: Carlos. Chamo-me Carlos. Moro na Rua Jabuticabeiras, na Vila dos Pomares. O olhar de Afonso para Dona Rosa, nesse momento, foi inevitável.
O casal que acolheu o menino era residente da favela Mãe Maria, próximo a área nobre da cidade, a Vila dos Pomares. Praticamente todos os moradores da comunidade Mãe Maria trabalhavam nas casas dos Patrões dos Pomares, como eram chamados os residentes daquele “nobre bairro”. Eram, em sua grande maioria, carpinteiros, motoristas, jardineiros, caseiros, domésticas, etc. No caso de Dona Maria, era dona de seu lar, apenas, mas com muito orgulho. Afonso fazia serviços gerais, quando menino trabalhou na funilaria do seu pai, depois se tornou eletricista por influência do tio e, finalmente, por si só, aprendeu a cultivar plantas e legumes e exercia também o oficio de jardineiro.
Após os curativos, Dona Rosa preparou um café bem forte para o menino. Fez um saboroso bolo de milho. Lavou-lhe as roupas sujas e lhe deu roupas novas e cheirosas de seu falecido filho, que por coincidência, na hora de seu padecimento, tinha a mesma idade de Carlos, dez anos.
Conversaram na salinha humilde. Dois sofás encostavam-se a duas paredes cegas. Na outra havia uma janelinha que dava para viela de frente. Ao lado o acesso a cozinha e logo à frente o único quarto da casa. Em um golpe de olho poderia ver quase toda a residência.
O menino abriu a sua mochila, tomou seu caderno de escola e mostrou a Dona Rosa e seu marido. Olha que linda letra ele tem Afonso! Exclamou a dona de casa. Sim com certeza este menino é muito inteligente, retrucou-lhe o marido. Carlos ainda mostrou para o casal o livro que estava lendo, falava sobre deuses e sábios da antiguidade. O material estava meio molhado, mas sua mochila de tecido grosso havia protegido seu caderno e livro. Passaram horas conversando na salinha, o menino não se dava conta que sua família estava a sua procura e o casal se esquecerá que este não era seu filho.
De repente toda aquela emoção do momento foi rompida, gritavam-lhe pelo nome, na rua de cima: Carlos, Carlos! Eram seus irmãos, seu pai e os amigos que lhes mostravam o caminho da ultima vez que viram o menino. Carlos agradeceu a benfeitoria ao casal, deu um beijo em Rosa, apanhou sua mochila e bicicleta e partiu ao encontro daqueles que lhe procuravam.
Carlos a partir desse dia nunca esqueceu Dona Rosa e Afonso. Olhava sua bela casa, sentia seu conforto, mas na verdade queria estar na casa daquelas singelas pessoas. Era apenas um barraco, mas tinha sentimento, emoção, vida. Nada era artificial, tudo era feito com paixão, e as poucas horas que Carlos ali ficou lhe ensinaram isto.
Toda tarde quando saia da escola Carlos se apressava para fazer uma visita ao casal acolhedor. Todo dia a mesma rotina. Carlos chegava à casa de Dona Rosa e o bolo com café já estava posto a mesa. Conversavam sobre todos os assuntos: escola, literatura, estórias. Ficavam por longas horas se divertindo, e antes do anoitecer Carlos se despedia e retornava ao seu lar verdadeiro. Seu pai sempre ocupado, viúvo, não fazia conta das visitas do filho para aquele casal. Só lhe pedia que voltasse antes do anoitecer, pois julgava a favela Mãe Maria como um lugar perigoso.
O menino tornou-se homem na comunidade. Conhecia toda vizinhança. Por anos freqüentava a favela e praticamente passou sua infância e começo de adolescência naquele lugar. Aprendeu muito. Coisas que não se via em seu bairro. Humildade, solidariedade, viver em comunidade foram alguns dos aprendizados. Certa vez colaborou com a família do Seu Dracir a construir sua casa. Foi um belo mutirão que se viu. Todos na rua colaboraram. Todos os dias ele fazia um pouco de tudo, carregava tijolos, confeccionava a massa de cimento, assentava o piso. Foram dois meses de muito trabalho, mas também muito divertimento. O povo era feliz, depois do expediente faziam um jantar comunitário na capelinha do bairro e todos conversavam alegremente. No final da construção, Dracir fez um belo churrasco e convidou a todos para celebrar. Nesta oportunidade Carlos também chamou seu pai, Cirurgião de um renomado hospital da cidade, para se juntar a seus amigos. Foi uma linda tarde, como nunca mais se viu por aquelas bandas.
Carlos cresceu e foi à universidade estudar economia. Seu pai desejará isto a seu filho e Carlos não se opunha, achava até interessante. Aos poucos Carlos deixou de visitar o pessoal da comunidade Mãe Maria. Já não havia tempo para isto. O estudo e os estágios lhe ocupavam quase todo tempo. Seu pai, influente na cidade, abrira a porta para Carlos conhecer os mais renomados economistas e empresários da região. Terminou o curso com mérito e logo se envolveu na política municipal.
Agora, Carlos fraternizava apenas nas rodas políticas e empresariais da alta sociedade. Ainda mostrava-se humilde, seus ensinamentos não foram perdidos, mas pouco a pouco se tornavam opacos, sem brilho. O povo da comunidade: Dona Rosa, Afonso, Seu Dracir e todos os outros, sentiam a falta daquele menino-moço, não mais o viam por aquelas bandas.
O povo da Mãe Maria vivia épocas de tensão. A cidade crescerá e ganhará importância e posição de destaque econômico no estado. A cidade recebia a cada dia novos moradores dispostos a investir no ramo imobiliário. O município não era tão grande em extensão territorial e a favela Mãe Maria travava o crescimento da malha urbana na zona oeste da cidade. Na câmara dos vereadores já haviam aprovado a construção do Bairro dos Prazeres naquela área e a justiça já tinha dado a desocupação daquelas terras em favor do município.
O prefeito da cidade retardou o projeto da construção de um novo bairro naquele local. Era época de eleições e como a maior parte dos moradores da comunidade tinha o titulo de eleitor na cidade, preferiu-se evitar o transtorno eleitoral do colegiado, por hora.
Golpe do destino, nesse mesmo ano, Carlos iludido com o poder político se candidatou a prefeito. Tinha uma imagem ótima, filho do Cirurgião Doutor Carlos Camargo Filho, formado em economia pela maior universidade do país, jovem, eloqüente, bonito, com bom circulo de amizades. Não demorou muito para cair nas graças do povo. O pessoal na comunidade logo manifestou seu apoio ao “menino”, talvez fosse à única salvação para toda aquela gente. “Ele há de lembrar onde cresceu”, exclamou Dona Rosa.
Carlos venceu com folga o antigo prefeito da cidade, o velho e rabugento Maciel Medeiros.
De fato, Carlos tinha um belo projeto para sua comunidade, regularizar as terras, construir casas populares financiadas pelo governo federal em auxilio aos municípios em desenvolvimento econômico e dar uma condição melhor a sua segunda família.
Carlos não havia entrado nesta sozinho. Nessa de política é você e sua turma. E a turma de Carlos eram os mais eminentes empresários da cidade, donos de construtoras, casa de materiais de construção, imobiliárias e etc. Para eles, casas populares em lugar privilegiado da cidade, próximo ao centro econômico era quase uma heresia. Apresentaram ao novo prefeito uma contra proposta, um loteamento na zona leste, antigo depósito de lixo, para assentar as famílias da favela Mãe Maria. Lugar suspeito, longe da cidade, dos locais de trabalho, sem asfalto, tratamento de esgoto, água, asfalto incipiente e tudo mais. Carlos relutou em vão, sem o apoio de sua “turma” não se manteria por muito tempo no governo.
Iludido mais uma vez, assinou o contra-projeto proposto pelos empresários da cidade e autorizou a desocupação da área da favela “Mãe Maria”. Um dia antes teve um sonho, lembrou daquele belo dia, em que se perdeu por aquelas terras, conheceu uma família maravilhosa, uma comunidade exemplar e aprendeu a ser homem. Logo, em seu sonho, apareceram uns palhaços, com olhos vermelhos, sangue na boca e unhas grandes e sujas. Neste sonho, os palhaços incendiavam as casas da favela e devoravam os moradores, os que sobreviviam eram presos, algemados e jogados no lixo, como carniça. Carlos acordou em prantos, não suportava aquela visão.
O dia D chegou, logo de manhã cedo, os policiais militares já estavam a postos, armados até os dentes em caso de algum protesto mais exaltado. O povo relutou pouco, as mães choravam, os pais apanhavam o que tinham de mais importante e os filhos andavam pelas vielas da comunidade pela ultima vez. Carlos não teve coragem de comparecer. Ficou em seu gabinete. Triste, mudo, naquele dia não recebeu ninguém. A maior parte das famílias saiu de suas casas, mas permaneceram próximo ao local. Quiseram ver as maquinas destruindo em um dia os sonhos de muitos anos. Era uma comunidade pobre, é bem verdade, mas conheciam bem os princípios solidários que não regem mais nossa sociedade.  Meses depois foram transplantados para o novo bairro na periferia da cidade – Vila dos amores – onde só havia tristeza e lamentações. O local era fétido, por conta do antigo lixão, havia doenças de ratos e tudo mais, não havia transporte eficiente e a água ainda não era 100% tratada. Varreram a comunidade para o lixo, como carniça, igual ao sonho de Carlos.
No mesmo dia em que as famílias receberam suas novas casas, no bairro dos amores, Carlos assinou sua saída do cargo de prefeito da cidade das ilusões, recolheu-se em seu sítio a 20 km do município e nunca mais foi visto pelo povo da antiga comunidade Mãe Maria.
Dizem por aí, que o antigo prefeito ficou louco, e todos os dias manda centenas de cartas para a Vila dos amores pedindo perdão pela sua traição. O povo de fato comenta este acontecido, mas ninguém verdadeiramente da muita atenção, com tantos problemas em seu dia-dia, já se esqueceram por completo do menino que apareceu em um dia de chuva e foi tratado com enorme cordialidade por aquela comunidade. 

(David Lugli)

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